Piano alone. A Composer's journal. Piano só. Diário de um compositor. Piano seul. Journal d'un Compositeur. Piano Solo. Diario di un Compositore. Klavier Allein. Ein Komponist Tagebuch.












Wednesday 16 September 2009

O amigo Vasco Granja


António e eu. Belém, Verão de 2005. Lembremo-nos deles agora, enquanto nos devolvem o olhar.
Fotografia de Isabel Ferreira Alves.

Quinta-feira, 07 de Maio de 2009.
O amigo Vasco Granja.

Há uns anos, quando conversava com o António Ramos Rosa no seu jardim, em frente à árvore que ele considera sua, falávamos de amizade, daqueles que se tornam ao longo da nossa vida os nossos “maiores amigos”, ainda que seja um termo que ambos deploramos, pois hierarquiza o que não é comparável. Os nossos poucos amigos mais próximos e antigos, os nossos alter-egos, aqueles que estão sempre connosco, mesmo quando não o estão fisicamente. Perguntei-lhe quem eram os seus. Depois de uma longa reflexão cuidada e silenciosa, o que como sempre parece durar toda a tarde, deu-me uma resposta que na altura me pareceu muito inesperada, o meu melhor amigo acho que é o Tengarrinha. Conhecemo-nos desde o MUD juvenil. Temos uma relação muito forte, e nem me lembro da última vez que estive com ele. Há também o Manuel Madeira, de Faro, que eu já lhe apresentei. É verdade, apresentou-me o Manuel Madeira, e em que circunstâncias! Um dia conto. O sentido desta fotografia acima surge então com o que ele me disse a seguir, após uma nova pausa. Havia ainda alguém muito especial, muito seu amigo, muito próximos: um homem inteligentíssimo, que não vejo há muitos anos. Já deve ter morrido, com certeza. Chamava-se Vasco Granja, estava ligado ao cinema de animação e à banda desenhada, mas também à literatura, e à arte em geral. Era um homem extraordinário, um grande amigo. Já ouviu falar?
Reagi como se imagina. Disse-lhe que marcou a minha infância, assim como a do César –como, contarei também um dia –, e a de outras gerações antes de nós, que era uma referência para mim. E que não tinha morrido, estava vivo! Propus-lhe então que o fossemos visitar. Ele ficou muito entusiasmado e pediu-me que organizasse tudo.
Telefonei então para casa do Vasco Granja, e a sua mulher deu-me a notícia que me deixou com dificuldade em falar. Ele tinha Alzheimer há cerca de seis anos, e agora não era já seguro para ele sair de casa. Ainda assim ele ficou muito feliz, ela disse-me que ele ficaria muito feliz com a visita, e que estava já muito emocionado por o seu amigo de há tantos anos ainda se lembrar dele dessa forma.

Anos antes, quando obtive o contacto de casa de Vasco Granja, lembro-me de ter telefonado a certas instituições respeitáveis que muito admiro no mundo da banda desenhada portuguesa. Falei com alguns nomes ilustres deste meio, e que também admiro. O que eu não esperava e que me entristeceu foi a resistência e indignação de outros, por eu estar interessado em contactar essa pessoa. Perguntavam-me porquê, porque tinha eu interesse em contactar alguém que já não tem qualquer relevância neste meio.
Hoje de manhã, o César telefonou-me, como o faz todos os dias e um pouco ao longo do dia, no nosso ritual de ele me contar logo de manhã as notícias mais importantes no Público, uma vez que eu não tenho tempo para ler jornais, e ele não começa o dia sem os ler. Aconselhou-me a procurar o Público de hoje, pois mesmo 3 dias depois do seu falecimento, havia ainda artigos interessantes e arrebatados sobre o grande homem que partira.
Ao contrário do que se podia esperar, fiquei furioso. Tantos anos de silêncio, tantos anos de desinteresse – salvo honradíssimas excepções, e quem os são, sabem que o são –, e eis que Vasco Granja faz aquilo que parece mais agradar ao sistema: morre.
Agora sim, agora podem lembrar-se de quem foi, do que fez, da sua relevância única – repito: única – no seu meio, da obra que deixou. Podem até lembrar-se, imagine-se, que foi ele que literalmente criou o termo “banda desenhada”, ao simplesmente traduzir literalmente o termo francófono bande dessinée, pois antes disso até chamavam-lhe outras coisas. Agora descobrem a correr na net que ele privou com Hergé, Moebius, Norman McLaren, Uderzo ou Morris, e tantos outros. Agora podem lembrar-se de coisas assim, agora sim. Sem que os seus pesadelos Liliputhianos os impeçam de respeitar e acarinhar, amar mesmo, os que tanto nos dão e sem os quais não seríamos sequer sombras de nós próprios.

Lembremo-nos dos nossos Grandes hoje, agora! Agora, enquanto eles sentem o mesmo Sol que nós, e acordam nas nossas mesmas manhãs. Digamo-lhes o que lhes devemos, que por vezes lhes devemos a melhor parte de nós, que não seríamos quem somos sem aquilo que eles conseguiram ser.

Olhemo-lhes nos olhos, e os seus olhares devolver-nos-ão a dimensão exacta da nossa infinitude.
Lembremo-nos deles agora, enquanto nos devolvem o olhar.

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